Notas sobre inteligência artificial - O teorema de Gödel e a Inteligência Artificial

Piergiorgio Odifreddi                                                        Tradução: Sergio A B Faria

Fonte: lucasamorim.net.br
 Dois livros - “Gödel, Escher e Bach” de Douglas Höfstadter, e “A Nova Mente do Imperador” de Roger Penrose – contribuíram para manter vivo, nos anos 80, o debate sobre inteligência artificial. O sucesso de público, num campo não muito familiar ao grande público tal como a divulgação científica, mostra como os seus autores são mestres na arte de atrair a atenção.

Ambos produzem um espetáculo de fogos de artifício. Höfstadter dispara no ar paradoxos lógicos, cânones com tentáculos, geometrias não euclidianas, cromossomos, neurônios, pedra da roseta, cristais aperiódicos, supercondutores, aforismos zen e formigueiros.  Penrose, com paradoxos quânticos, relatividade geral, mundos paralelos, fresta do tempo, fractais, fótons, a torre de Pisa, o Big Bang, buracos negros e brancos, tessitura periódica do plano, quase-cristais e um número binário que ocupa duas páginas.

Como todo programa de auditório que se preze, os dois autores apresentam convidados famosos ao seu lado. A sala de visitas colorida de Höfstadter recebe Frederico, O Grande, Bach e família, Aquiles e a tartaruga, Lewis Carroll e Alice, Euclides e Ramanujan, Escher e Magritte. A de Penrose, mais austera, acolhe Galileu e Newton, Schröodinger e seu gato, e Mandelbrot, Platão e Einstein, e certamente o criador.

Disputado por ambos os autores, o verdadeiro visitante de honra é o lógico matemático Kurt Gödel, cujo resultado nos anos 30, conhecido como ‘teorema de Gödel’, já havia atraído a atenção de filósofos, jornalistas, e (por que não?) poetas, inspirando até um poema para a música. Os dois não são assim, particularmente originais, desse ponto de vista. O aspecto interessante está no fato de que suas teses são opostas: ambos usam o teorema de Gödel para argumentar sobre a inteligência artificial, só que Höfstadter a favor e Penrose contra. Para entender de que lado está a razão, é necessário apresentar os termos do debate e enunciar o teorema de Gödel.

A inteligência artificial

Em 1936, o matemático inglês Alan Turing desenvolveu as bases teóricas da informática, introduzindo um modelo abstrato de máquina de calcular programável, atualmente chamada apenas máquina de Turing. Ele inspirou-se na análise do processo mental do cálculo e, ainda que seu trabalho fosse puramente matemático, Turing usou várias vezes uma terminologia antropomórfica, falando especificamente de ‘estados mentais’ para se referir a configurações internas da máquina. Poucos anos depois ele começou a acalentar o sonho de construir fisicamente tal máquina e continuou a usar a analogia original, falando do seu projeto como da construção de um cérebro. Tais expressões não eram mais que analogias estimulantes, mas superficiais, e deste modo, eram vistas por aqueles que conheciam Turing, como, por exemplo, Max Newmann, orientador de sua tese de mestrado, teve um papel de destaque na construção do primeiro computador inglês. No necrológio de Turing Newmann disse que Turing tinha um grande talento para analogias cômicas, mas brilhantes, como aquela que introduziu as discussões sobre cérebros e máquinas.

Em seguida, a analogia de Turing ficou perdida e, quando os computadores se tornaram disponíveis, a analogia entre eles e o cérebro começou a ser levada a sério. Em certo sentido, isso era previsível: ao longo da evolução científica, muitas vezes, tentou-se assimilar o cérebro à última maravilha tecnológica. Por exemplo, Descartes descreveu-o como um sistema hidráulico que permite o fluxo periódico de espíritos vitais de uma bacia central para os músculos, e Pearson viu como um sistema de telefone, composto de fios fixos e conexões móveis. Chegou-se mesmo a propor o computador avançado como um modelo para todo o universo, do mesmo modo que no século XVII, o universo foi comparado a um relógio mecânico, e no século XIX a uma máquina a vapor.

Claro que não estamos negando o fato de que a novidade tecnológica pode ser útil para o entendimento do mundo em geral, ou do cérebro, em particular. Por exemplo, o modelo de Pearson foi aplicado no estudo da resposta dos reflexos espinhais, e Arbib está usando há muitos anos computadores para modelar funções cerebrais específicas. O que está em discussão é o reducionismo exagerado daqueles que acreditam ter atingido as fronteiras do conhecimento. Em relação a isso, nos advertem as “Investigações Filosóficas” de Wittgenstein com o lema: "o progresso parece sempre maior do que realmente é."

No estado actual do conhecimento, as relações entre cérebro e computador são apenas superficiais: o cérebro é um órgão eletroquímico com um grande número de conexões, que trabalham com ações maciçamente paralelas e globais (holística) a baixa velocidade, e de baixo consumo de energia, capaz de gerar continuamente novos elementos e novas conexões; o computador é, ao contrário, um sistema eletrônico de ligações fixas, operando quase sequencialmente e apenas localmente, em alta velocidade.

Não se coloca, portanto, o problema de identificar o cérebro e os computadores como máquinas, mas sim de compará-los em relação aos seus comportamento e desempenho. Na verdade, quando o computador se tornou disponível, começou-se a usá-lo não só para cálculos matemáticos para os quais foi concebido, mas também para simular diferentes aspectos da atividade mental humana. Por exemplo, Turing começou a escrever programas para jogar xadrez e, gradualmente, mudou para projetos mais ambiciosos, tais como: a resolução de problemas, prova de teoremas, representação do conhecimento, análise de linguagem, reconhecimento de imagem, capacidade de aprender com a experiência etc..

Sucessos, ainda que parciais, não faltam: basta lembrar dos sistemas em que o conhecimento de especialistas em um determinado campo está codificado num conjunto de regras e tornam-se capazes de responder a perguntas relacionadas com os dados de campo, substituindo assim os especialistas. Ou da robótica, onde a atividade de uma máquina é programada, para que ela possa substituir operadores humanos.
Mas, como acontece muitas vezes, o sucesso sobe à cabeça. Aquilo que impulsionava Turing para construir um cérebro, tornou-se o programa da Inteligência Artificial (na esperança de recuperar, se não a cabeça, pelo menos, o seu conteúdo). Porém aquilo que para Turing significava somente  construir um computador, é agora reinterpretado com a irreverência de Prometeu, como a construção de um programa capaz de simular a atividade do cérebro humano e isso mudou todo sentido da questão, deixando de lado o problema discutido anteriormente, se o cérebro é ou não é, realmente, um computador.

Falamos até aqui de atividade cerebral e não de pensamento, para permanecer no campo científico e assim evitar discussões metafísicas, das quais, nem o debate sobre a Inteligência Artificial, nem Hofstadter, nem Penrose, permaneceram imunes. Citamos apenas, a título de exemplo, o problema de saber se é possível falar de "inteligência" de um programa (perguntas  semelhantes podem ser feitas sobre "criatividade", "autoconsciência", e assim por diante).

É claro que se inteligência é definida como uma qualidade humana, um programa não pode ser inteligente. Turing - pensando que este problema era demasiado sem sentido para merecer uma discussão - simplesmente propôs considerar inteligente qualquer programa cujo comportamento seja indistinguível do dos seres humanos (ou seja, se define, de modo operativo: tudo o que se comporta de maneira inteligente), e sugeriu também como provocação inserir no referido programa um elemento aleatório, tal como uma roleta, de modo a imitar a imprevisibilidade do comportamento humano.

Voltando à questão do cérebro, a pesquisa de Sperry (que lhe valeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1981) mostrou que as atividades dos dois hemisférios são complementares e absolutamente diferenciadas. O hemisfério esquerdo é responsável pelo pensamento abstrato e atividades de comunicação, escrita e cálculo. O direito é mudo, mas responsável pelas atividades de reconhecimento, de percepção, de criatividade. Enquanto o primeiro grupo de atividades é precisamente aquele em que os computadores sobressairam-se, o segundo é aquele no qual está se batendo a Inteligência Artificial.

Este debate não é mais que uma reencarnação de um confronto semelhante que ocorreu na década de 20 entre formalistas e intuicionistas, comandados respectivamente por Hilbert e Brouwer, sobre a posssibilidade ou não de se comprimir o raciocínio matemático dentro de sistemas formais que consistem de axiomas e regras rígidas de dedução. A versão moderna simplesmente substituiu "programas" por "sistemas formais". Agora, a disputa, longe de limitar-se aos aspectos científicos, envolve questões pessoais, acadêmicas e até mesmo legais, e degenerou a tal ponto que Einstein a comparou com a guerra dos ratos e sapos contada em um grego anônimo.

Hilbert, que via em Brouwer um perigo mortal do qual a matemática tinha de ser defendida a todo o custo, conseguiu, em 1928, removê-lo de sua posição de editor do jornal matemático mais prestigioso do seu tempo, Mathematische Annalen, resultando em uma vitória temporária para o camundongos (e a derrota final de Brouwer, que virtualmente parou de trabalhar e ter seguidores). Mas em socorro das rãs em debandada vem, em 1931, o caranguejo Gödel com seus teoremas. Desde então, esses resultados têm sido tomados por ambas as partes em litígio, como argumentos em seu favor.

 *Este artigo publicado oiriginalmente em italiano, em “La rivista dei libri” (edição Italiana do “New York Rewiew of Books”), por Piergiorgio Odifreddi, matemático e logicista italiano, apaixonado por História da Ciência, é composto de três partes. As duas outras aparecerão em números posteriores deste informativo. (Sergio A. B. Faria)

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